Movimento de desconstrução da maternidade romântica propõe uma quebra de padrões e busca expor a realidade enfrentada por essas mulheres que num primeiro momento sofrem ao ser mães
“A maternidade é uma coisa muito solitária. Você se sente em um barco sozinha. Tudo depende de você”. O desabafo é da dona de casa Renata Lopes, 26 anos, casada e mãe de duas filhas de 2 e 5 anos. O relato vai contra uma imagem romântica e idealizada da maternidade. Uma reprodução perpetuada pela ficção dos filmes e telenovelas, que causa sofrimento à maioria das mulheres. Uma corrente denominada maternidade consciente tenta desconstruir tais mitos. A desconstrução da maternidade romântica busca informar a realidade enfrentada por mulheres-mães, com o intuito de garantir o acesso a informações pertinentes sobre a maternidade real, a fim de tomar uma decisão consciente sobre uma vida com ou sem filhos. O assunto é controverso até no movimento feminista.
Ilustração: Helena Jungmann
Era uma tarde comum de segunda-feira, casa limpa, louça por lavar e alguns poucos brinquedos espalhados pelo chão da sala. As meninas tiravam o cochilo da tarde, que dura em média uma hora e meia, tempo que Renata reserva para si. “As meninas estão dormindo, podemos conversar sossegadas”, disse em tom eufórico, enquanto arrumava o cabelo e as cadeiras da sala, onde a entrevista seria dada.
Foi aos 21 anos que Renata se deparou pela primeira vez com o universo desconhecido da maternidade. Foi um choque. “Nos decepcionamos muito quando a criança nasce, pois, antes de nascer existe a idealização de uma maternidade perfeita”, comenta, após checar se as filhas continuavam dormindo. “Principalmente os primeiros meses, são muito puxados. Você quer ser feliz, se sentir bem, mas você não consegue ”, desabafa. “ A criança te traz muita felicidade, mas você não dorme, não vai ao banheiro, não escova os dentes direito”, disse.
Renata não é uma exceção de quem ama os filhos e a maternidade, mas descobriu uma realidade diferente da vendida pela mídia. Quase todas as mães relatam uma situação semelhante. Elas se sentem atraídas pelo sonho de serem mães, por meio da idealização da mídia, assim como, a imposição cultural pré-estabelecida desde o nascimento. A historiadora Sabrina Balthazar ressalta que o conceito de maternidade observado atualmente foi constituído lentamente no início do século 15, ganhando corpo com o passar do tempo. “Ciência, estado e medicina consideravam relevante a atribuição da criação dos filhos às mulheres, já que aos homens era destinado o papel no mercado de trabalho e de provedor da família”, explica. Como a função de criação dos filhos era destinada a elas, a pressão pelo bom comportamento familiar acaba por recair no colo das mulheres, responsáveis por manter a boa imagem da família. “No século 20, jornais e revistas destinavam certo espaço para apresentar um papel feminino sempre atrelado aos afazeres domésticos e ao cuidado com os filhos. Ressaltando a função prioritária da mulher nessas funções”, diz.
A psicóloga Larissa Portela, 30 anos, mãe de um bebê de um ano, afirma que a desconstrução da maternidade romântica existe e é um movimento muito empoderador, por ser um espaço de fala muito importante para a mulher que sofre por não se encaixar em um padrão de maternidade. “Aquela mulher que tenta seguir o modelo perfeito da maternidade é aquela mulher que vai ter depressão, vai ter transtorno de ansiedade, vai ter transtorno do pânico, ela vai ser muito adoecida”, afirma. “É uma exigência sobrenatural em cima da mulher para ser uma boa mãe, uma boa esposa, uma boa profissional, uma boa dona de casa”, critica.
Em pesquisa realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e publicada na revista científica Journal of Affective Disorders, aponta que uma em cada quatro mulheres brasileiras sofre de depressão pós-parto. A psicóloga Letícia Luján explica que é muito comum nesse período a mulher desencadear um processo de baby blues – semelhante à depressão mas especifico do período de pós-parto – mas adverte que diagnósticos precipitados podem atrapalhar nessa fase tão delicada. “Nem tudo é depressão pós-parto. Às vezes a mulher só está passando por um momento em que precisa de apoio, precisa de ajuda”, explica. Mas muitas pessoas se afastam, diz a psicóloga, então a mulher que se torna mãe tem de lidar com a própria solidão e a solidão do círculo social.
A psicóloga Beatriz Bandeira questiona os padrões de maternidade atuais e aponta as angustias sofridas por essas mães, além dos problemas causados pela construção da maternidade romântica. “A idealização da maternidade não traz nada de bom. Ela só traz dor e sofrimento, para quem não vive a maternidade dessa forma”. Ela defende a criação de redes de apoio para as novas-mães, a fim de combater um ideal de maternidade que oprime as mulheres. “Esse apoio é necessário para curar as feridas do feminino relativas à maternidade, às opressões que todas que as mulheres sofrem. Um espaço compartilhado de respeito, de apoio, acolhimento e escuta”, conclui.
Mães solo
No caso da dona de casa e mãe de uma filha, Brenda Arnaud, 19 anos, a falta de apoio do pai da criança a fez buscar alternativas para fugir da culpa da maternidade solo, e comenta que a experiência da maternidade poderia ter sido mais fácil, caso tivesse tido acesso a materiais que expunham a real maternidade. “É totalmente diferente do que nos vendem em revistas ou novelas. Nós ficamos tão doidas que dá vontade de sumir, fugir, de se matar”, lembra.
A rede de apoio, explica a psicóloga Beatriz, é fundamental para propiciar um espaço para que as mulheres-mães possam se expressar, para que elas sejam acolhidas, percebam que não estão sozinhas e nem se sintam culpadas diante das reações que a maternidade real impõe. “É importante romper essa barreira do sofrimento solitário que acontece entre quatro paredes e ninguém vê”, salienta. Falar abertamente sobre as dificuldades da maternidade, de forma que propicie um fator de cura e acolhimento.
Quando a falta de apoio se torna abandono, o sofrimento é ainda maior. “Quando contei para o pai da minha filha que estava grávida, ele disse que não daria para assumir a responsabilidade de ser pai naquele momento. Ele me xingou, me pediu para abortar, disse um monte de coisa, mas eu deixei para lá”, lamenta Brenda. Ela explica que tudo foi mais difícil sem a ajuda do pai da criança e que foi preciso adiar planos, como o da faculdade. “Durante um período de dois meses após o parto eu estava muito triste. Percebi que não teria mais a mesma vida de antes, e que teria que adiar muitas coisas”, observa. “E até hoje é assim. Tudo ainda é muito complicado”, lamenta.
Movimento de desconstrução da maternidade romântica busca acabar com os mitos relacionados a maternidade. Foto: Bernardo Moreira
Brenda sempre teve o sonho de ser mãe, mas não naquele momento. E não daquele jeito. Apesar da gravidez precoce, ela encarou a notícia da gravidez da melhor forma possível, mas ainda enfrenta os desafios da criação de Laura. “Não temos tempo para comer, ir ao banheiro, tomar um banho de 20 minutos”, diz. “Eu saberia disso se tivesse tido acesso a esses textos sobre a quebra de padrões da maternidade”, ressalta.
A historiadora, Sabrina Balthazar, explica que se vive a era das liberdades e que modelos ultrapassados de comportamento já não são mais aceitos. Dessa forma, outras maneiras de manipulação são observadas, passando uma ideia de autonomia e individualidade ainda que certos padrões permaneçam. “Por mais que a mulher tenha hoje uma participação mais efetiva na sociedade, em muitos casos, a atribuição dos cuidados de maternagem ainda é exclusiva da esfera feminina”, aponta. O papel das mulheres na dinâmica familiar ainda se apresenta como nos moldes de antigamente em muitos lares brasileiros, onde mulheres são responsáveis por cuidar das crianças enquanto o pai sai para trabalhar, ou abandona a família.
Desconstrução virtual
A desconstrução da maternidade romântica é vista como empoderadora para muitas mulheres que não se encaixam no padrão de maternidade imposto pela mídia. Movimentos que visam a inserção dessas mulheres de volta à sociedade são vistos como válvulas de escape para essas mulheres-mães. Hoje elas ocupam cada vez mais lugares nas redes sociais. Crescente busca por grupos de facebook, com o intuito de conceder espaço para desabafos, e blogs pessoais, fomentam a desconstrução da maternidade romântica no âmbito virtual. “Eu participo de grupos de mães no facebook. Desabafamos sobre o dia-a-dia e isso me faz sentir melhor, me sinto acolhida”, comenta Brenda.
Criadora do projeto Real Maternidade Luciana Cattony, buscou uma forma de amenizar a maternidade para outras mães através das próprias vivências. “Me incomodava muito ver a maternidade glamourizada na TV. A vida real não é assim”. O projeto teve início em uma página no facebook, há cinco anos. E há três, Luciana vislumbrou um mercado a ser explorado voltado a um público que também não se conformava com os modelos impostos. “A missão do projeto é levar leveza e alegria às mulheres-mães, que são constantemente cobradas por elas mesmas e pela sociedade” completa Luciana. No site Real Maternidade, o assunto é abordado sem mitos, tabus ou idealização exagerada da figura materna.
A rede de apoio é fundamental para propiciar um espaço para que as mulheres-mães sejam acolhidas e possam se expressar. Foto: Bernardo Moreira
Mãe de um filho de seis anos, Luciana teve a gravidez planejada aos 34 anos. “Me incomodava muito ver meu filho ser criado pelas tias da creche. Quando ele completou dois anos eu pedi demissão do meu emprego como publicitária”, relata. Luciana então decidiu criar um projeto pessoal em seu tempo livre para ajudar outras mulheres que se sentem muito exigidas pela maternidade. Além do conteúdo disponível no site, a equipe do Real Maternidade realiza eventos materno-infantis, e organizam palestras em empresas sobre a valorização das mulheres-mães no mercado de trabalho.
Luciana explica que as mulheres, após se tonarem mães, ficam mais empáticas, mais produtivas e adquirem habilidades (Soft Skills) que podem ser aproveitadas no mercado de trabalho. “As mães não têm a consciência de como elas se tornam seres humanos melhores e mais produtivos após a maternidade”, afirma. Luciana visa expor a real maternidade presente na vida dessas mulheres. “O movimento de desconstrução da maternidade é muito importante, as próprias mães não se identificam mais com a maternidade glamourizada presente nos comerciais de margarina”, ressalta.
Feminismo materno
Por meio do feminismo, muitas mulheres ocupam cada vez mais seus espaços de fala, questionam o patriarcado e refletem sobre o papel e o lugar atribuído a elas na sociedade. A crítica ao patriarcado tenta denunciar como o romantismo foi concebido, numa visão tradicional de papéis de homens e mulheres. Neste modelo, o homem é o provedor da felicidade das mulheres. “O que se procura fazer é garantir que as mulheres possam exercer, com liberdade, seus projetos de vida. Ser ou não ser mães, sozinhas ou com quem desejarem”, explica a assessora do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), Milena Argenta.
Apesar de vertentes feministas buscarem destacar o feminismo materno como sendo uma pauta de grande relevância e saúde da mulher, muitas mulheres-mães não se sentem amparadas pelo movimento e apontam que não oferecem estrutura para que essas mulheres-mães assumam seus locais de fala. “Sou feminista, sou mãe e decidi ser dona de casa” relata Renata, após admitir que se sente julgada dentro do movimento feminista por ser mãe em tempo integral. “Foi uma decisão que eu tomei que foi boa para mim, porque se eu trabalhasse e estudasse estaria abrindo mão das minhas filhas”, reconhece. No final das contas, completa a psicóloga Letícia Luján, as mulheres-mães acabam sendo excluídas politicamente.
A desconstrução da maternidade romântica é uma forma de empoderamento para muitas mulheres que não se encaixam no padrão de maternidade imposto pela mídia
A arquiteta Laís Araújo, 46 anos, casada e mãe de três filhos, é feminista e explica que se sente posta de lado quando se trata de maternidade dentro do movimento. “A impressão que tenho é que às vezes a única pauta feminista abordada é a escolha da não maternidade”, afirma. A maternidade compulsória é pauta feminista justamente por conta do direito de escolha. “O estereótipo materno faz com que as mães sejam envoltas a uma caricatura divina, por conta disso sentem profunda culpa e pressão na construção da maternidade”, acrescenta. Milena observa que o feminismo acolhe as demandas das mães. “A desconstrução da maternidade romântica significa também trazer todas essas questões à cena e, certamente, o debate feminista é um dos grandes responsáveis por isso”, pondera.
O movimento feminista fomenta a discursão acerca da quebra de padrões, mas a maternidade ainda gera debates controversos. A psicóloga Beatriz explica que dentro do feminismo existe um movimento chamado child-free, de mulheres que não desejam ter filhos. “Eu respeito muito as mulheres que não querem ter filhos, mas algumas que fazem parte do child-free são completamente hostis com mulheres que são mães”, afirma. A segregação das crianças na sociedade é mais uma maneira de isolamento de mulheres-mães. “A gente vive em uma cultura que não agrega crianças. Excluímos uma classe que faz parte de grande parte da população de forma muito naturalizada”, comenta a psicóloga.
Milena conta que atualmente grupos de mães feministas estão desenvolvendo um movimento chamado de maternidade ativa, reivindicando o direito a dedicarem-se quase integralmente aos filhos na primeira infância, na educação, e nos cuidados com a saúde. “Elas passam a trabalhar como autônomas para terem tempo de se dedicarem aos filhos. E mantém páginas virtuais na internet onde discutem questões polêmicas [sobre a maternidade]”, explica.
Mulheres que optam por não serem mães
As psicólogas Beatriz Banderia e Letícia Luján questionam os padrões de maternidade atuais e defendem a criação de redes de apoio para novas-mães
O papel da mulher na sociedade está sendo cada vez mais discutido. Com a desconstrução da maternidade romântica compulsória, surge uma nova geração de mulheres: as NoMos (abreviação de Not Mothers – Não Mães), mulheres que optam por não serem mães. No Brasil, o percentual delas aumenta a cada ano. Informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta que em 2014, 18,8% de lares de casais não tinham filhos, diferentemente da porcentagem de 13,5% do ano de 2004. A psicóloga Letícia Luján, 23 anos, é um exemplo de mulher que não deseja ter filhos. “Eu ainda sinto que tem muito preconceito. Pouca gente entende isso, que a gente só não quer ter filhos, não temos esse desejo, e que isso não nos torna menos mulher.”, afirma. Movimentos feministas como o Child-free também são responsáveis por fomentar a discussão acerca da decisão de não ter filhos.
Por Maira Alves.
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